segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Luis Fernando Verissimo escreve


Luis Fernando Verissimo: “No Japão, onde são adoradas, as cerejeiras têm significados místicos e inspiram lendas e histórias sobre suas origens. Segundo uma dessas lendas, um ser celestial feminino chamado Konohana Sakoya, desceu à Terra perto do Monte Fuji e transformou-se na primeira cerejeira, com poderes que incluíam os de revigoramento sexual dos seus adoradores. Faz parte dos hábitos japoneses o que chamam de “hanami” (que quer dizer “contemplação”) e consiste apenas em ir para a rua admirar as cerejeiras na época da floração. E...Não consigo. Eu estava disposto a escrever sobre qualquer outro assunto menos os mais de 100 mil mortos na tétrica aliança entre a pandemia e o descaso oficial do governo brasileiro com a pandemia, até sobre uma cerejeira florescendo no nosso quintal, mas não consegui. Tentei, mas não consegui. A cerejeira do nosso quintal estava sofrendo uma transformação diante dos meus olhos, enquanto eu escrevia. Transformava-se num monstro de culpa não expiada por mais de 100 mil mortos. Não, mais terrível ainda: um monstro sem culpa. Um monstro ocupado em ser só ele, porque nada, nem um único morto, era como ele. Nós não temos a desculpa da cerejeira, a desculpa monstruosa de não poder fazer nada”. (Estadão)

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