Por Sharon Sevilha
(para ler ouvindo A Internacional - Garotos Podres)
Ele é casado com outra mulher e tem um filho de uns treze anos que não conheço. Também não conheço a outra. É loira, tem os cabelos longos e lisos, isto eu sei. Bem magra, de dar aflição. Baixa, tem as mãos e os pés bem pequenos. Para disfarçar, deixa as unhas crescerem e as pinta de vermelho. Temos isto em comum: as unhas vermelhas. As minhas mãos, porém, são iguais as dele, com dedos longos e bem feitos.
Não o vejo há muitos anos, deve estar diferente do retrato que tenho. Fotografia antiga, em preto e branco, mas amarelada pelo tempo. Ele estava sorrindo e seus dentes eram perfeitos, bem branquinhos. Os olhos de uma pureza sem igual. Olhos de quem quer conquistar o mundo e ainda não descobriu o quanto este mundo vai lhe ser cruel. Os cabelos negros e encaracolados penteados de lado. Sobrancelhas grossas, o nariz ligeiramente arrebitado. Usava uma camisa branca toda abotoada, só o colarinho aberto. Levo este retrato sempre comigo, bem guardado. Ele tinha uns dezenove anos, na época.
Como estará agora? Deve continuar forte, certamente. Era vaidoso demais, não se permitiria engordar ou ficar barrigudo. Talvez seus cabelos estejam começando a ficar grisalhos.
De que falarei, meu Deus? Devo perguntar sobre sua nova mulher, sobre seu filho? Com que roupa devo ir? Abro o guarda-roupa e fico olhando.
Está muito quente, um calor insuportável, ar pesado, abafado. O vestido branco é bonito. Ele dirá que estou mostrando as pernas: não fica bem quem tem as pernas grossas usar saias tão curtas. Gênio ruim igual ao meu - minha avó costumava dizer. Fico irritando-a até que ela diga, já exasperada, que tenho o gênio ruin como o dele. Sorrio secretamente. Melhor vestir uma bermuda.
As lembranças que guardei foram poucas. Sempre brigava comigo por causa das minhas unhas roídas. Dizia que se me visse com o dedo na boca, ia cortá-lo com a faca de cortar o pão. Outras vezes, era porque eu não queria comer. Detesto sopas, sempre detestei. Ele não tinha muita paciência. Eu também não tenho.
Não me recordo de quando ele partiu. Faço um esforço danado para me lembrar agora, enquanto penteio os cabelos, mas não consigo. Acho melhor não perguntar nada a respeito de sua família, vai me achar enxerida, se quiser, ele me conta. Minha língua ferina. Melhor nem fazer comentários.
Vou perguntar se ele está trabalhando em alguma peça nova, para quando está prevista a estreia, se seu papel é um dos principais, este tipo de coisa. Ele queria que eu fosse bailarina ou advogada, caí para as letras. Ele também gostava de escrever. Li alguns de seus poemas. Não tivemos oportunidade de conversar a respeito, uma pena.
Marcamos o encontro em um barzinho pequeno, no final da tarde, quando o sol estiver se pondo. Está quase na hora. O céu está gritando de tão vermelho. Será que vai chover?
Saio sem guarda-chuva porque perco todos. Podia pegar um táxi, mas é tão pertinho, vou a pé mesmo. O ar pesado é sufocante. Se ele estivesse comigo, meu Deus, essa minha vida teria sido tão diferente! Não sei se para melhor ou pior, mas diferente. Da última vez que me viu, meus cabelos eram quase brancos de tão loiros. Agora são castanhos. Só restaram algumas sardas e as unhas, que até chegar lá, estarão roídas.
Começa a chover, porém ainda faz sol. Ainda bem que não saí com o vestido branco. Ando com passos lentos para me molhar ao máximo. É chuva repentina de verão, passa logo. Chego ao local do encontro. O bar fica em frente a uma praça que está abandonada por causa do temporal. A chuva cessou. Os bancos escassos estão molhados e os pingos caem das folhas das árvores e do toldo do bar. O sol está acabando de se pôr nessa praça que tem o nome de um poeta do Romantismo. Sento-me em um dos bancos, estou enchardada também.
Espero pelo homem que não teve tempo de se separar, de encontrar a mulher loira com as unhas vermelhas, de ter um filho ou de ver sua filha crescer. Não pôde estrear uma peça de sucesso. Não podê. Nada disto lhe foi permitido.
O céu está sem nuvens e já aparecem as primeiras estrelas.
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