domingo, 10 de maio de 2020

CARGAS TROCADAS

Por Sharon Sevilha

Inauguro este espaço publicando periodicamente algumas crônicas e contos que escrevi durante minha juventude e que nunca tive coragem de mostrar para ninguém, pois nunca as achei boas o bastante para serem lidas. Como diz Lygia Fagundes Telles, a pouca idade não justifica o mau livro.

E, sendo dia das mães, vou postar uma que escrevi para a minha mãe.

CARGAS TROCADAS

Se esta história não tivesse sido contada por minha mãe, caminhoneira, eu não acreditaria. É surreal demais. Então, se você não acreditar, procure-me que lhe provo que é verdade.

Minha mãe herdou do meu pai uma transportadora e, não satisfeita em administrar, passou também a levar cargas de um Estado para o outro. Tinha vinte e pouco anos e já era casada com meu pai, médico e professor universitário, que não gostava nada desta história de "mulher sozinha na estrada com caminhão."O casamento deles só durou três anos. Nasci no fim do segundo. Separaram-se sem traumas. Por conta de aminha mãe estar sempre viajando, fiquei morando com meu pai e só a via nas férias escolares.. Isso tudo aconteceu em São Paulo, cidade onde nasci. Papai recebeu uma proposta de trabalho em Santa Catarina e nos mudamos, os dois,  para lá. Mamãe continuou na capital paulista com sua transportadora.

Em menos de dois anos, ela já havia conhecido e se casado com um jovem biólogo que fazia estágio em um aquário no litoral paulista e, por conta disto, só vinha para São Paulo aos finais de semana. Mal o conheci, pois eu só os encontrava nas férias, período que minha mãe me levava para trabalhar com ela na transportadora todos os dias e comprava para um sorvete - enquanto tomava uma cervejinha com seus caminhoneiros. Era eu, mamãe e vários homens que se policiavam para contar seus "causos" por conta de minha presença. Quando a conversa começava a esquentar, sempre tinha um que lembrava: criança não é surda. E mudavam de assunto.

Esse casamento de minha mãe durou quase dez anos e me deu uma irmã. Acredito que eles poderiam estar juntos até hoje, se minha mãe não fosse atrapalhada e o biólogo não acabasse descobrindo que ela tinha outra família., no Rio de Janeiro.

Acho que 9o marido carioca foi o grande amor de minha mãe.. Ele também era caminhoneiro e era dona de uma transportadora perto do cais. Ali, um cheiro de peixe ficava impregnado em tudo, não tinha banho que resolvesse.

Eles se conheceram quando minha mãe voltava deSanta Catarina e passou pelo Rio para pegar uma carga que ia levar para a Baixada Santista - onde buscaria o biólogo que, a esta altura, já fazia mestrado em animais marinhos. Água-viva, eu acho. Só sei que não era sobre peixes o que ele estudava.

Segundo mamãe, logo que ela viu o carioca, soube ser ele o homem de seu destino. Começaram um romance. Ela contou que era casada, que tinha uma filha pequena, um ex-marido e mais uma filha, do primeiro casamento. Nada disso assustou o rapaz.

Minha mãe levou essa vida tranquilamente por mais de sete anos. Ela e o marido carioca se encontravam sempre que possível, ora no Rio ora em São Paulo, dependendo dos afazeres do biólogo e das férias escolares. Chegaram a viajar muito juntos, levando carga para Pernambuco, onde construíram uma casinha em Olinda para quando a aposentadoria chegasse. E adotaram minha irmã mais velha - a única a saber da verdade.

E foi quando aconteceu o inesperado.

Estávamos nas férias escolares do meio do ano. O carioca aproveitou que minha irmã vinha ficar com mamãe e foi levar uma carga para Goiás. Meu pai trabalhava insanamente em um pronto-socorro. E o biólogo era o único pai presente por ali.

Julho foi um mês em que minha mãe trabalhou o dobro do esperado. Houve uma auditoria na transportadora e ela ficou só fazendo trabalho interno. Quarenta dias longe de seu caminhão. Era a primeira vez que a minha irmã carioca vinha a São Paulo - muito bem orientada a dizer que era filha de uma amiga de mamãe. O biólogo não não questionava nada. Quando findava o dia e ele via as três meninas dormindo, ia se dedicar aos estudos. Muitas vezes, levantei de noite para beber água e o encontrei na sala, cochilando sobre os livros.

No fim do mês, ele parecia um zumbi. Minha mãe ia viajar para Pernambuco justo no dia acertado para que fôssemos entregues a nossos respectivos pais. Atrapalhada, com muitas providências a tomar, ela me levou com minha irmã para a transportadora e nos deixou aos cuidados de duas caminhoneiras. Uma delas ia para Joinville, e se prontificou a viajar um pouco mais e me deixar nas mãos do meu pai, em Florianópolis. A outra ia direto para o Rio, então não tinha problema. Minha mãe repassou as cargas das caminhoneiras, beijou suas filhas e voltou ao trabalho, recomendando que, a qualquer problema durante a viagem, que ela fosse acionada via rádio, uma vez que não havia celulares ainda.

Logo depois do almoço, minha mãe pegou a estrada. Com a confusão da auditoria e a correria dos últimos dias, ela se esqueceu de consertar  seu rádio, mas não deu maior  importância  a isso., confiava nas funcionárias que estavam viajando conosco. Assim, seguiu seu caminho. 

Quando voltou, foi direto para casa com a intenção de ligar para a transportadora e tirar o resto do dia para descansar. Ao abrir a porta, deparou-secom suas três filhas e os três pais.

Antes de viajar, mamãe tinha destinado as cargas corretamente, mas na hora de embarcar as filhas, trocara os caminhões. Assim, eu fui parar no Rio de Janeiro e minha irmã, em Santa Catarina.

Meu pai cortou relações com minha mãe definitivamente. Minha avó chegou a proibi-la de ir ao velório dele. O biólogo pediu o divórcio e se mudou de vez para a Baixada Santista. O carioca vendeu a transportadora, mudou-se de vez para São Paulo e ficou responsável pela criaçãode nós três.

Hoje, ambos vivem sossegados, em Olinda. E minhas duas irmãs nos encontramos sempre e adoramos contar esta histórias enquanto vemos o sol se por e comparttilhamos uma cerveja bem gelada.

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